segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Uma quadra

 

Desceu as escadas do restaurante na esquina da Rua Marechal Floriano Peixoto com a Duque de Caxias. Estufado pelo farto almoço entrou na farmácia que fica sob a cantina e comprou comprimidos contra a azia que sempre lhe acometia após seus exageros gastronômicos. Ainda assim, o sabor do molho que cobria o filé recheado permanecia em sua boca, dissipando qualquer arrependimento.

Enquanto pensava nisso, o cheiro de assepsia da farmácia foi substituído pelo de fritura que vinha de outro restaurante ao lado. Parou um instante para observar a obstinada voracidade com que aqueles trabalhadores do comércio devoravam o que tinha a frente. Com certeza eles não teriam a mesma satisfação que tivera a pouco, embora pudessem se irmanar na azia que talvez sentissem pela ingestão daquele óleo tantas vezes usado.

Um arrepio percorreu sua espinha depois de tal pensamento e fez com que caminhasse três ou quatro passos apressados em direção à Praça da Matriz. Sob a sombra de uma árvore sentiu a brisa suave que corria e tornava aquele dia tão agradável. Acendeu um cigarro que tragou com gosto, expelindo a fumaça devagar enquanto olhava os livros de um sebo decadente.

Leu "As Vinhas da Ira" em uma capa empoeirada e pensou que deveria conhecer uma história com um título tão impactante, mesmo que nunca tivesse ouvido falar em John Steinbeck. Sem entrar na loja pagou o senhor que ali atendia, recebendo um quase comovido agradecimento como resposta.

Jogou a bituca no chão e, ao apagá-la, sentiu como o limo tornava aquelas lajotas escorregadias. Com o sol atingindo seu rosto em cheio, desceu as escadarias que levam à Borges de Medeiros e caminhou rumo ao Mercado Público sem registrar em sua memória as sensações que aquelas quadras traziam.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Abdução

Acordou sobressaltado com o barulho do despertador. Passara a noite em claro pensando na manhã seguinte e pouco pudera dormir. Nervoso, cruzou a sala sem falar com sua mãe e se dirigiu ao banheiro. Durante o banho seu coração batia descompassado. Não se atrevia a pensar no que estava por vir e por isso apenas olhava fixamente para alguns cabelos que desciam lentamente pelo ralo.

Depois de se vestir, desceu as escadas do seu edifício na Avenida Francisco Trein, na zona norte de Porto Alegre. Indo pela calçada, mal notou as pessoas que se amontoavam em frente ao Hospital Conceição a procura de atendimento para suas variadas enfermidades. Era uma terça-feira ensolarada de inverno e os transeuntes caminhavam satisfeitos, após um longo período de chuvas. O seu caminhar, no entanto, era diferente dos demais. Tinha o passo incerto e lento daqueles que não desejam chegar ao seu destino.

Na Avenida Assis Brasil, parou na loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um café. A atendente perguntou se ele se sentia bem, mas não teve forças para murmurar uma palavra sequer. Tomou o café em dois longos sorvos e atravessou a movimentada avenida para tomar o primeiro ônibus que passasse em direção ao centro da cidade.

Dentro do veículo, buscou um banco vazio ao fundo. Porém sua solidão durou pouco, pois fez o restante da viagem praticamente esmagado contra a janela, ao lado de um senhor muito gordo e com um cheiro forte de cigarro que subira no ponto seguinte. Durante o trajeto entrou um rapaz que distribuiu bilhetes com um pedido de esmola entre os passageiros. Ao ler o papel, pensou se alguém teria pena dele também e chorou baixo, com o rosto colado ao vidro.

Desceu do ônibus ao lado do Mercado Público e atravessou o Largo Glênio Peres com a cabeça baixa, envergonhado de suas lágrimas. Parou em seguida, em frente a uma loja de discos na Galeria Chaves, indeciso se deveria levar aquilo adiante. Mas, temendo ser visto por um conhecido que se aproximava, apressou o passo em direção à Rua da Praia. Sem coragem de olhar para trás, subiu a Borges de Medeiros até a esquina com a Riachuelo.

Entrou nessa rua e caminhou mais alguns metros. Suado, olhou ao redor e observou por um instante um jovem casal que escolhia livros de um balaio em frente a um dos vários sebos que ali existem. Viu seus semblantes serenos e chorou mais uma vez, levantando o rosto para o céu claro que agora lhe ofuscava os olhos.

Baixou o rosto, olhou em torno de si novamente e se acalmou um pouco com o fato de não ter despertado a atenção de ninguém. A sua frente estava o seu destino, uma porta aberta ao lado de uma pequena loja de roupas íntimas. Cruzou o umbral e se deparou com uma escada mal iluminada por uma lâmpada suja. O barulho dos degraus que ia galgando fazia coro o bater surdo que seu peito emitia. No topo da escada, se viu entre caixas cheias de livros empoeirados sobre um carpete mofado. Escutou o rangido da porta sendo fechada à suas costas, no outro extremo da escada, fechou os olhos e se deixou dominar pela escuridão.

***

A última referência ao seu nome conhecida constava em um jornal de três meses depois, em uma pequena nota de desaparecimento com uma foto sua ao lado. Mas esta foi pouco notada, pois estava impressa ao lado de um anúncio da grande promoção de automóveis que aconteceria no dia seguinte.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Cavacos do Ofício

Desculpem alguns erros de ortografia e pontuação que estão por aí. Escrevo e depois não tenho olhos ou tempo para revisar.

domingo, 10 de abril de 2011

Madrugada Insone - IV

Há muitos anos atrás, Roberto foi uma pessoa curiosa. Quando criança, nutria com o mais sincero interesse os pequenos mistérios que se apresentam a aqueles que há pouco foram apresentados à vida. Se o céu trovejava, logo queria saber o motivo. Também muito lhe intrigava por que seu pai tinha pelos no peito e sua mãe não. O problema era que seus questionamentos não encontravam o mesmo entusiasmo em uma família ausente que lhe sonegava estas e tantas outras respostas. Com o passar dos anos, a frustração isso lhe causava foi amainando a vontade de saber que o inquietava sempre. Ainda assim, nutria a esperança que a escola que seus irmãos mais velhos frequentavam o ajudasse a ter algumas respostas para a sua curiosidade latente.

Aos seis anos de idade, sentado em uma cadeira meio quebrada de uma escola estadual, percebeu que, ao contrário do que imaginara, sua curiosidade não era bem-vinda em sua classe. A cada pergunta que fazia a sua professora, notava nesta um ar cada vez maior de enfado e impaciência. Ora, tudo que Roberto fazia era obedecer o que a mestra havia enfatizado no primeiro dia de aula, que ninguém voltasse para casa com dúvidas. No entanto, como pode perceber, havia muito mais de protocolo do que de sinceridade nessa solicitação. E embora não soubesse o que significava protocolo, foi sendo aprovado, ainda que sob a pecha de alundo "inconveniente" e "hiperativo".

Chegada a adolescência, a curiosidade que um dia preencheu Roberto de excitação pelo desconhecido se transformou em estranhamento. Também mudou seu sentimento em relação a aquilo que não conhecia, que agora trazia medo ao invés de prazer. Ano a ano, sua vontade de entender o mundo vinha sendo solapada e esta sofreu o golpe final no dia em que algum manda-chuva político apareceu em sua escola para distribuir promessas e apertos de mão no ano em que completaria o ensino fundamental. Movido pelo ânimo que restara, Roberto perguntou ao maioral qual era a importância de ir à escola, posto que esta não tinha conseguido tornar o mundo mais claro para si e, pelo que podia perceber, também para os seu colegas. No lugar da resposta que acreditava que lhe seria dada de acordo com o tão divulgado espírito democrático da escola, recebeu uma suspensão três dias e uma bela coça com a fivela do cinto do seu pai, que fora obrigado a comparecer ao gabinete do diretor para prestar esclarecimentos.

Desde então, Roberto decidiu abandonar a curiosidade. Frequentando agora muito mais a rua do que a escola, percebeu que poderia viver sem fazer perguntas. Mais do que isso, quem faria perguntas agora seriam os outros e ele traria as soluções. Claro que não foi difícil encontrar alguém que lhe daria a atenção tantas vezes negada antes em troca do seu silêncio. Assim, pouco a pouco, Roberto foi trocando o título de "incoveniente" pelo de "extremamente conveniente". Aos dezessete anos abandonou a família sem que esta transparecesse muito pesar, começou a agir mais e questionar menos em benefício próprio, enfim, se tornou um homem resoluto.

E foi esta resolução que colocou Roberto ao volante de uma Kombi velha descendo uma ladeira estreita a toda velocidade na Favela A. Depois de trabalhar bem o vagabundo que tinha armado a palhaçada de um protesto contra a violência do tráfico de drogas na favela e de surrar também sua esposa e o filho mais velhos deles, foi dar um recado explícito a todos que ousassem questionar quem tinha a autoridade ali. Colocou o palhaço na parte de trás do furgão e o largou ao lado de uma vala de esgoto, no coração daquela comunidade. Sem o menor vestígio do garoto curioso que fora um dia, Roberto subiu novamente a ladeira estreita com toda a certeza de que o esperava a aprovação do chefe e uma cerveja gelada.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Pequeno Infortúnio

O grande salão estava repleto de pessoas iluminadas por uma luz suave. Eram dezenas de casais que se aventuravam por aqueles sofás de couro de alguma forma, dispostos a transcender aquilo que muitos chamariam de uma "vida sexual monogâmica". Em uma primeira tentativa ou como verdadeiros habitués, homens e mulheres levavam seus pares pelo recinto em busca de algo excitante para ver ou, quem sabe, fazer.

Entre os homens de todos os matizes que ali se encontravam estava também Ernesto. Ele não tinha exatamente um físico "possante", embora naquele mesmo lugar se encontrassem outros indivíduos bem piores do que ele. Ao contrário do que se poderia pensar, não levava uma vida "selvagem", sendo a maior "loucura" que cometera até então o episódio em que, frustrado em ter seu carro estragado no dia dos namorados, se contentou em levar Sílvia ao motel de ônibus mesmo. Aliás, Sílvia era sua acompanhante neste programa tão pouco usual.

Sobre Sílvia, podemos dizer que aceitou o convite para visitar a casa de suíngue com muito mais efusão do que Ernesto imaginava. O convite surgiu não entre lençóis nem tampouco em um arroubo de lascívia, mas em uma mesa de bar, quando Ernesto havia passado um pouco da conta em termos de álcool. Quando solicitado a colaborar com o rumo que sua incursão noturna tomaria na companhia de Sílvia e dos demais amigos, Ernesto só disparou uma única palavra: suruba. Na manhã seguinte, pronto para se desculpar pelo seu comportamento inadequado, foi surpreendido por Sílvia munida de um papel em que estavam anotados o nome, o endereço e o valor do investimento na mencionada casa de troca de casais.

Dessa maneira, se encontrava todos alí naquele momento: Ernesto, Sílvia e diversos outros casais cobiçosos dos pares alheios. Enquanto buscava se ambientar, nosso estreante na arte da libertinagem punha seus olhos nos convivas, reparando em seus modos e atitudes, quando percebeu (e não sem um certo espanto, é preciso dizer) um cutucão por trás. Antes que pudesse defender sua hombridade ante estranho que chamava sua antenção de uma forma tão canhestra, Ernesto ouviu:

- Haroldo!
- Ernesto.
- Hã?
- Meu nome é Ernesto.
- Você não não é o filho da dona Mira?
- Sim, sou eu mesmo.
- E não me reconhece?
- Claro que não!
- Ah, que bobagem! Com esta máscara não tinha como reconhecer mesmo. Espera. E agora?
- Ainda não.
- Sou eu! O Vavá!
- Quem?!
- O Valdomiro, filho da Marizete e do Agenor, que morava três casas depois da sua. Nós jogávamos futebol juntos.
- Ah. Pois é. Como vai?
- Levando, levando. E você, vem sempre aqui?
- Não, é a primeira vez.
- E veio sozinho?
- Não, vim com a minha noiva. Onde ela foi se meter?
- Veja só! Noivo, hein? Então se livrou daquela safada que você namorava naquela época?
- Na verdade, é com ela que eu noivei, a Sílvia.
- Opa. Não leve a mal. Safada é um modo figurado de falar. Tipo "venceu na vida, a safada". Entendeu? Na verdade, sempre achei ela uma moça muito recatada.
- Sei. Não me leve a mal, mas eu preciso ir andando.
- Claro, claro. Safado.

E com um meio sorriso nos lábios, Ernesto saiu à procura de Sílvia, que suportava com abnegada bravura uma dupla penetração naquele momento.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Madrugada Insone - III

Marta estava acordada, tentando fazer sua filha Maria dormir. Os últimos meses foram de muita novidade naquela casa, com a chegada do bebê. Um novo ânimo contagiara toda a família, ainda que as noites tivessem ganho uma nova atividade. Extenuada pela intensa rotina com o acréscimo da filha que nascera há dois meses, Marta contemplava com satisfação e um certo alívio o rosto de Maria que quase adormecia.

Após se certificar que a pequena realmente estava dormindo, a mãe foi à acanhada cozinha de sua igualmente acanhada casa para tomar um copo de água. Feliz por finalmente dispor de algumas horas de sono, Marta foi escutando um barulho crescente de um carro em alta velocidade. Quando o som parecia atingir seu volume máximo, este foi acrescido do estridente ruído de freios e de risadas.

Temendo por si mesma e pela filha, Marta não teve coragem de ir olhar o que acontecia. Aguardou ansiosa por minutos que se estendiam lentos na escuridão. Pensando no quão agitada era a vida da malandragem na favela A, escoava em sua mente o futuro da recém chegada menina, as pessoas com quem se envolveria nos anos por vir e a luta diária para a resguardar da fealdade deste mundo.

Quando parecia que as coisas estavam novamente calmas, Marta escutou passos apressados de alguém passando ao lado de sua casa, junto à vala de esgoto. Dominada por uma coragem até então desconhecida, abriu a porta de trás e só conseguiu enxergar um vulto fugindo pelas ruelas que ficavam atrás do seu terreno. Contornou seu pátio e viu no ferro-velho em frente o vigilante se embriagando, como fazia todas as noites.

Recuperando a calma, Marta escutou o choro de Maria ecoando pela casa. Sua merecidas horas de descanso teriam de esperar um pouco mais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Três Chances para o Acaso

1

Como todos os sábados, caminhou do carro até a academia de dança após estacionar em uma rua próxima. Como também tinha se tornado usual, passou pelo menino que mora na casa ao lado do seu destino, e como sempre, ignorou as caretas que ele lhe fazia. Subiu os três degraus do hall de entrada e se dirigiu ao vestiário para trocar de roupa.
Pronto para o ensaio, encontrou todos os colegas, inclusive seu par. Apesar de estar um pouco acima do peso, ela sempre teve muita desenvoltura para a dança, tornando aquelas aulas muito agradáveis. Fazia seis meses que ele passara a freqüentar o curso de dança de salão que sua ex-namorada recomendara. A princípio, tinha ficado muito acanhado com a situação porque, além de ser naturalmente tímido, se considerava muito “artificial” para qualquer tipo de atividade cênica. No entanto, com o passar do tempo, deixou de levar tudo aquilo tão a sério e começou a achar seu compromisso de sábado a tarde muito interessante. Além de auxiliar em seus problemas de inibição, percebia que, pouco a pouco, seu corpo vinha se tornando mais rijo e, em sua opinião, mais atraente.
Tinha quase um metro e oitenta de altura, começava a ficar grisalho, mas, de certa maneira, esse detalhe tinha um ar natural em sua fisionomia. Havia pouco tinha passado dos trinta anos e, certamente, se notava nele um certo ar de maturidade. Para o curso, sempre usava uma calça de malha preta com uma camiseta da mesma cor. Nos pés, usava um sapato preto e essa combinação, sempre que refletida no espelho, o divertia muito.
Quando a música começou, segurou firme sua parceira e começou a guiá-la nos passos que há algumas semanas vinham treinando. Ela estava bastante entusiasmada, e ele pensou que se sua aparência não era exatamente a mais atrativa, ela certamente tinha algo que despertava a atenção dos homens, especialmente quando dançava. Pararam por um momento, após um leve tropeço dele, riram após trocarem um olhar de cumplicidade, e retomaram os movimentos.
Passados três quartos de hora, quando o ensaio estava quase chegando ao fim, ele tomou uma decisão: a convidaria para sair à noite, mais tarde. Já fazia bastante tempo que se separara e já era hora de iniciar outro relacionamento. Além disso, aquela sintonia que alcançavam em cada dança não podia ser fortuita. Enquanto alimentava essas intenções, sentiu o cheiro forte de madeira queimada que invadia a sala de dança.
O estabelecimento do curso consistia em uma ampla sala quadrada e dois banheiros que serviam como vestiário. Fora a porta de entrada e uma grande janela ao lado, havia ainda uma portinhola que levava a uma pequena área livre, cercada de muros. O fogo que tomava o lugar formava uma barreira à porta que levava à rua. Ele teve a calma suficiente para ajudar os colegas a escaparem pela janela ao lado da porta. No entanto, quando chegou sua vez de ficar a salvo do risco, já não era possível acessar esta janela. Colocou uma toalha que alguém havia deixado ali no rosto para não inalar muita fumaça e se dirigiu à área dos fundos.
Chegando lá, decidiu pular o muro que ficava a direita, porque era mais baixo. Ficou aliviado por ter chegado ali tão facilmente, pois havia pensando no pior quando as labaredas o impediram de ganhar a rua em frente. Também ficou feliz por notar a presença de um senhor de idade que estava sentado em uma poltrona dentro da casa à qual aquele pátio pertencia. Com certeza, o ancião já notara o fogo e alertara o corpo de bombeiros, pensou. Ao se aproximar, não entendeu o motivo do sorriso quase irônico que o outro lhe oferecera, assim como não entendeu quando o mesmo senhor puxou uma pistola de baixo da almofada da poltrona e disparou os dois tiros que lhe vararam o peito.

2

Em uma casa como tantas outras, em um sábado fatídico:

- Que merda é essa aqui no chão?
- Ah mãe, é o meu trabalho para a feira de ciências.
- Isso é o seu trabalho? Essa sujeira toda espalhada pelo chão?
- É que eu precisei usar argila para montar esse vulcão aí. Legal, não é?
- Essa coisa ridícula deveria ser um vulcão? Ah menino, esse monte de barro não vai dar para nada.
- Mas a professora achou ótima a minha idéia...
- É uma retardada, quase tanto quanto você. Vulcão, isso aí, essa é boa. Agora vai brincar na rua que eu não vou deixar você aqui dentro. Imbecil desse jeito, é capaz de botar fogo na casa toda.
- Onde você vai?
- Não interessa. Vamos, raspa daqui! Porcaria, esse menino só atrasa a minha vida. Maldita hora em que eu dormi com aquele cafajeste. Vamos!

(por que ela fala assim comigo? puxa vida, eu tento tanto ser bom, mas ela só enxerga defeito no que eu faço. e o que o meu pai tem a ver com isso? por que será que é um cafajeste? por que não quis casar com essa vadia? se eu soubesse quem ele é... sei lá... só sei que ela devia ser boa comigo, todo mundo diz que as mães são as melhores pessoas do mundo. mas a minha não é, não é mesmo. chamou meu vulcão de merda. fiquei a manhã inteira trabalhando nele. merda ela disse. merda é aquele troço que ela me faz comer todo o dia. sempre que vou à casa dos meus amigos é diferente, tem sempre uma comida boa e quentinha, não aquele negócio morno e sem gosto que tem em casa todos os dias. merda é ela que vai se esfregar na academia aqui do lado e acha que eu não sei. por que ela gosta tanto de se esfregar nos homens e nem me dá um abraço de vez em quando? quando ela dança parece tão feliz... queria que fosse assim comigo também. não sei o que fiz pra ela. mas se eu pergunto, ela começa a chorar e sai de casa. e eu fico sozinho. não gosto de ficar sozinho. mas quase sempre eu tô sozinho. fora as aulas, tô sempre sozinho. a minha professora é bem mais legal que a minha mãe. pena que ela me xinga quando eu não faço os deveres. pelo menos ela me dá os parabéns quando eu copio todo o texto. ih, lá vem aquele filho da puta que dança com a minha mãe. puto, viado, desgraçado, merda é essa roupa toda preta que ele usa lá dentro. quem ele acha que é? o zorro. eu tenho que ficar andando aqui na rua pra minha mãe poder rebolar com esse filho da puta aí. me chamou de imbecil aquela puta, disse que eu ia botar fogo na casa. chamou meu trabalho de merda. ela vai ver quem é que é imbecil. só queria que a minha mãe fosse como a dos outros...)

- Ô moleque, que você tá fazendo aí? Não, não faz isso! Vai pegar fogo em toda a fiação! Fogo! Fogo! Moleque dos infernos! Volta aqui!

3

Mesmo quando jovem, ele já era conhecido como "o Velho". Ainda que seus cabelos sempre tenham sido ralos e seu rosto repleto de sardas, o apelido se aplicava muito mais à sua personalidade. Muito supersticioso e desconfiado, frequentemente era desagradável com as pessoas pela intransigência de suas opiniões. Se por algum motivo cismava com alguma coisa, não abandonava uma discussão até que seu interlocutor se desse por vencido. E se caso os argumentos lhe faltassem, agredia seu adversário da maneira mais torpe com insultos direcionados ao ponto fraco específico de cada um. Isso o tornou impopular desde a adolescência.
Essas discussões acaloradas que tinha com qualquer um lhe custaram muitas surras que recebia com valentia, embora sem muito sucesso no revide, porque tinha um físico franzinho, quase doente. Entretanto, após a surra, murmurava para si mesmo, "idiotas, o que lhes falta de cérebro, sobra em força bruta". As constantes brigas e a impopularidade o tornaram uma pessoa solitária, e essa solidão o tornou cada vez mais arisco ao convívio humano.
Certa vez, já em idade adulta, o Velho arranjou uma companheira. Não se sabe como, uma alma muito dedicada se afeiçoou a ele. Essa incerteza, no entanto, não lhe passou despercebida. Também, não sabia o Velho por que diabos alguém se sujeitara a viver consigo. Logo essa incerteza se transformou em desconfiança e esta, em agressão. A moça, que no início o tolerava quase cegamente, passou a sofrer com os questionamentos mais infundados, as insinuações mais vis e com os impropérios mais rudes que lhe eram dirigidos. Não foi à toa que o Velho acordou em uma manhã e encontrou a casa vazia. Nunca mais teve notícia de sua “amada”.
Dessa forma, a vida do Velho se tornou uma sucessão de dias muito parecidos, de casa para o trabalho em uma repartição pública em que fora admitido, do trabalho para casa. Em sua vida solitária, abandonou quase totalmente o asseio, não porque lhe faltasse qualquer coisa, mas simplesmente porque não fazia questão de qualquer contato com outras pessoas. Sua falta de higiene, no entanto, atraía a atenção dos outro para si, de modo que muitos o olhavam e faziam os comentários menos lisonjeiros a seu respeito.
Para a mente já perturbada do velho, todos esses acontecimentos a princípio corriqueiros foram assombrosos para sua relação com o mundo. E quando o Velho realmente envelheceu, só sobrou uma casa igualmente velha e uma desconfiança doentia de tudo e de todos. Essa casa, que já fora muito bonita em outros tempos, era agora um amontoado de cômodos cheirando a mofo. Os únicos ambientes que freqüentava eram o banheiro que o recebia em seus não muito freqüentes banhos e uma sala abarrotada de embalagens de comida que comprava em restaurantes baratos, porque a ojeriza do Velho não permitiu que aprendesse a cozinhar. Nessa sala em que fazia suas refeições e conspirava contra o planeta, ele também dormia e “guardava” seus andrajos amarrotados, quase todos ruços e manchados. A mobília era constituída de uma poltrona velha e suas respectivas almofadas, uma mesinha em que repousava uma televisão que alimentava sua ira e uma pistola Mauser. Esse recinto tinha comunicação com um pequeno jardim, onde o mato grassava.
Nessa situação se encontrava o Velho em mais um sábado rançoso de sua vida, belicoso com o gênero humano, sentado em sua poltrona não assistindo a um programa de auditório qualquer. Despertou de seus devaneios ao sentir um cheiro forte de fumaça. Pensou, “querem acabar comigo”. Alisava sua Mauser quando enxergou um homem todo vestido de preto, com uma toalha encobrindo o rosto, cambaleando em seu jardim. Sem saber bem o porquê, se sentiu exultante e sorriu. Fez mira e disparou duas vezes para em seguida assistir o corpo do homem produzir um som abafado ao cair sobre o capim alto. O Velho se levantou da poltrona e caminhou até o corpo. Foi com sangue em seus pés que murmurou, “eu tinha razão”.