terça-feira, 3 de agosto de 2010

Três Chances para o Acaso

1

Como todos os sábados, caminhou do carro até a academia de dança após estacionar em uma rua próxima. Como também tinha se tornado usual, passou pelo menino que mora na casa ao lado do seu destino, e como sempre, ignorou as caretas que ele lhe fazia. Subiu os três degraus do hall de entrada e se dirigiu ao vestiário para trocar de roupa.
Pronto para o ensaio, encontrou todos os colegas, inclusive seu par. Apesar de estar um pouco acima do peso, ela sempre teve muita desenvoltura para a dança, tornando aquelas aulas muito agradáveis. Fazia seis meses que ele passara a freqüentar o curso de dança de salão que sua ex-namorada recomendara. A princípio, tinha ficado muito acanhado com a situação porque, além de ser naturalmente tímido, se considerava muito “artificial” para qualquer tipo de atividade cênica. No entanto, com o passar do tempo, deixou de levar tudo aquilo tão a sério e começou a achar seu compromisso de sábado a tarde muito interessante. Além de auxiliar em seus problemas de inibição, percebia que, pouco a pouco, seu corpo vinha se tornando mais rijo e, em sua opinião, mais atraente.
Tinha quase um metro e oitenta de altura, começava a ficar grisalho, mas, de certa maneira, esse detalhe tinha um ar natural em sua fisionomia. Havia pouco tinha passado dos trinta anos e, certamente, se notava nele um certo ar de maturidade. Para o curso, sempre usava uma calça de malha preta com uma camiseta da mesma cor. Nos pés, usava um sapato preto e essa combinação, sempre que refletida no espelho, o divertia muito.
Quando a música começou, segurou firme sua parceira e começou a guiá-la nos passos que há algumas semanas vinham treinando. Ela estava bastante entusiasmada, e ele pensou que se sua aparência não era exatamente a mais atrativa, ela certamente tinha algo que despertava a atenção dos homens, especialmente quando dançava. Pararam por um momento, após um leve tropeço dele, riram após trocarem um olhar de cumplicidade, e retomaram os movimentos.
Passados três quartos de hora, quando o ensaio estava quase chegando ao fim, ele tomou uma decisão: a convidaria para sair à noite, mais tarde. Já fazia bastante tempo que se separara e já era hora de iniciar outro relacionamento. Além disso, aquela sintonia que alcançavam em cada dança não podia ser fortuita. Enquanto alimentava essas intenções, sentiu o cheiro forte de madeira queimada que invadia a sala de dança.
O estabelecimento do curso consistia em uma ampla sala quadrada e dois banheiros que serviam como vestiário. Fora a porta de entrada e uma grande janela ao lado, havia ainda uma portinhola que levava a uma pequena área livre, cercada de muros. O fogo que tomava o lugar formava uma barreira à porta que levava à rua. Ele teve a calma suficiente para ajudar os colegas a escaparem pela janela ao lado da porta. No entanto, quando chegou sua vez de ficar a salvo do risco, já não era possível acessar esta janela. Colocou uma toalha que alguém havia deixado ali no rosto para não inalar muita fumaça e se dirigiu à área dos fundos.
Chegando lá, decidiu pular o muro que ficava a direita, porque era mais baixo. Ficou aliviado por ter chegado ali tão facilmente, pois havia pensando no pior quando as labaredas o impediram de ganhar a rua em frente. Também ficou feliz por notar a presença de um senhor de idade que estava sentado em uma poltrona dentro da casa à qual aquele pátio pertencia. Com certeza, o ancião já notara o fogo e alertara o corpo de bombeiros, pensou. Ao se aproximar, não entendeu o motivo do sorriso quase irônico que o outro lhe oferecera, assim como não entendeu quando o mesmo senhor puxou uma pistola de baixo da almofada da poltrona e disparou os dois tiros que lhe vararam o peito.

2

Em uma casa como tantas outras, em um sábado fatídico:

- Que merda é essa aqui no chão?
- Ah mãe, é o meu trabalho para a feira de ciências.
- Isso é o seu trabalho? Essa sujeira toda espalhada pelo chão?
- É que eu precisei usar argila para montar esse vulcão aí. Legal, não é?
- Essa coisa ridícula deveria ser um vulcão? Ah menino, esse monte de barro não vai dar para nada.
- Mas a professora achou ótima a minha idéia...
- É uma retardada, quase tanto quanto você. Vulcão, isso aí, essa é boa. Agora vai brincar na rua que eu não vou deixar você aqui dentro. Imbecil desse jeito, é capaz de botar fogo na casa toda.
- Onde você vai?
- Não interessa. Vamos, raspa daqui! Porcaria, esse menino só atrasa a minha vida. Maldita hora em que eu dormi com aquele cafajeste. Vamos!

(por que ela fala assim comigo? puxa vida, eu tento tanto ser bom, mas ela só enxerga defeito no que eu faço. e o que o meu pai tem a ver com isso? por que será que é um cafajeste? por que não quis casar com essa vadia? se eu soubesse quem ele é... sei lá... só sei que ela devia ser boa comigo, todo mundo diz que as mães são as melhores pessoas do mundo. mas a minha não é, não é mesmo. chamou meu vulcão de merda. fiquei a manhã inteira trabalhando nele. merda ela disse. merda é aquele troço que ela me faz comer todo o dia. sempre que vou à casa dos meus amigos é diferente, tem sempre uma comida boa e quentinha, não aquele negócio morno e sem gosto que tem em casa todos os dias. merda é ela que vai se esfregar na academia aqui do lado e acha que eu não sei. por que ela gosta tanto de se esfregar nos homens e nem me dá um abraço de vez em quando? quando ela dança parece tão feliz... queria que fosse assim comigo também. não sei o que fiz pra ela. mas se eu pergunto, ela começa a chorar e sai de casa. e eu fico sozinho. não gosto de ficar sozinho. mas quase sempre eu tô sozinho. fora as aulas, tô sempre sozinho. a minha professora é bem mais legal que a minha mãe. pena que ela me xinga quando eu não faço os deveres. pelo menos ela me dá os parabéns quando eu copio todo o texto. ih, lá vem aquele filho da puta que dança com a minha mãe. puto, viado, desgraçado, merda é essa roupa toda preta que ele usa lá dentro. quem ele acha que é? o zorro. eu tenho que ficar andando aqui na rua pra minha mãe poder rebolar com esse filho da puta aí. me chamou de imbecil aquela puta, disse que eu ia botar fogo na casa. chamou meu trabalho de merda. ela vai ver quem é que é imbecil. só queria que a minha mãe fosse como a dos outros...)

- Ô moleque, que você tá fazendo aí? Não, não faz isso! Vai pegar fogo em toda a fiação! Fogo! Fogo! Moleque dos infernos! Volta aqui!

3

Mesmo quando jovem, ele já era conhecido como "o Velho". Ainda que seus cabelos sempre tenham sido ralos e seu rosto repleto de sardas, o apelido se aplicava muito mais à sua personalidade. Muito supersticioso e desconfiado, frequentemente era desagradável com as pessoas pela intransigência de suas opiniões. Se por algum motivo cismava com alguma coisa, não abandonava uma discussão até que seu interlocutor se desse por vencido. E se caso os argumentos lhe faltassem, agredia seu adversário da maneira mais torpe com insultos direcionados ao ponto fraco específico de cada um. Isso o tornou impopular desde a adolescência.
Essas discussões acaloradas que tinha com qualquer um lhe custaram muitas surras que recebia com valentia, embora sem muito sucesso no revide, porque tinha um físico franzinho, quase doente. Entretanto, após a surra, murmurava para si mesmo, "idiotas, o que lhes falta de cérebro, sobra em força bruta". As constantes brigas e a impopularidade o tornaram uma pessoa solitária, e essa solidão o tornou cada vez mais arisco ao convívio humano.
Certa vez, já em idade adulta, o Velho arranjou uma companheira. Não se sabe como, uma alma muito dedicada se afeiçoou a ele. Essa incerteza, no entanto, não lhe passou despercebida. Também, não sabia o Velho por que diabos alguém se sujeitara a viver consigo. Logo essa incerteza se transformou em desconfiança e esta, em agressão. A moça, que no início o tolerava quase cegamente, passou a sofrer com os questionamentos mais infundados, as insinuações mais vis e com os impropérios mais rudes que lhe eram dirigidos. Não foi à toa que o Velho acordou em uma manhã e encontrou a casa vazia. Nunca mais teve notícia de sua “amada”.
Dessa forma, a vida do Velho se tornou uma sucessão de dias muito parecidos, de casa para o trabalho em uma repartição pública em que fora admitido, do trabalho para casa. Em sua vida solitária, abandonou quase totalmente o asseio, não porque lhe faltasse qualquer coisa, mas simplesmente porque não fazia questão de qualquer contato com outras pessoas. Sua falta de higiene, no entanto, atraía a atenção dos outro para si, de modo que muitos o olhavam e faziam os comentários menos lisonjeiros a seu respeito.
Para a mente já perturbada do velho, todos esses acontecimentos a princípio corriqueiros foram assombrosos para sua relação com o mundo. E quando o Velho realmente envelheceu, só sobrou uma casa igualmente velha e uma desconfiança doentia de tudo e de todos. Essa casa, que já fora muito bonita em outros tempos, era agora um amontoado de cômodos cheirando a mofo. Os únicos ambientes que freqüentava eram o banheiro que o recebia em seus não muito freqüentes banhos e uma sala abarrotada de embalagens de comida que comprava em restaurantes baratos, porque a ojeriza do Velho não permitiu que aprendesse a cozinhar. Nessa sala em que fazia suas refeições e conspirava contra o planeta, ele também dormia e “guardava” seus andrajos amarrotados, quase todos ruços e manchados. A mobília era constituída de uma poltrona velha e suas respectivas almofadas, uma mesinha em que repousava uma televisão que alimentava sua ira e uma pistola Mauser. Esse recinto tinha comunicação com um pequeno jardim, onde o mato grassava.
Nessa situação se encontrava o Velho em mais um sábado rançoso de sua vida, belicoso com o gênero humano, sentado em sua poltrona não assistindo a um programa de auditório qualquer. Despertou de seus devaneios ao sentir um cheiro forte de fumaça. Pensou, “querem acabar comigo”. Alisava sua Mauser quando enxergou um homem todo vestido de preto, com uma toalha encobrindo o rosto, cambaleando em seu jardim. Sem saber bem o porquê, se sentiu exultante e sorriu. Fez mira e disparou duas vezes para em seguida assistir o corpo do homem produzir um som abafado ao cair sobre o capim alto. O Velho se levantou da poltrona e caminhou até o corpo. Foi com sangue em seus pés que murmurou, “eu tinha razão”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário