segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Uma quadra

 

Desceu as escadas do restaurante na esquina da Rua Marechal Floriano Peixoto com a Duque de Caxias. Estufado pelo farto almoço entrou na farmácia que fica sob a cantina e comprou comprimidos contra a azia que sempre lhe acometia após seus exageros gastronômicos. Ainda assim, o sabor do molho que cobria o filé recheado permanecia em sua boca, dissipando qualquer arrependimento.

Enquanto pensava nisso, o cheiro de assepsia da farmácia foi substituído pelo de fritura que vinha de outro restaurante ao lado. Parou um instante para observar a obstinada voracidade com que aqueles trabalhadores do comércio devoravam o que tinha a frente. Com certeza eles não teriam a mesma satisfação que tivera a pouco, embora pudessem se irmanar na azia que talvez sentissem pela ingestão daquele óleo tantas vezes usado.

Um arrepio percorreu sua espinha depois de tal pensamento e fez com que caminhasse três ou quatro passos apressados em direção à Praça da Matriz. Sob a sombra de uma árvore sentiu a brisa suave que corria e tornava aquele dia tão agradável. Acendeu um cigarro que tragou com gosto, expelindo a fumaça devagar enquanto olhava os livros de um sebo decadente.

Leu "As Vinhas da Ira" em uma capa empoeirada e pensou que deveria conhecer uma história com um título tão impactante, mesmo que nunca tivesse ouvido falar em John Steinbeck. Sem entrar na loja pagou o senhor que ali atendia, recebendo um quase comovido agradecimento como resposta.

Jogou a bituca no chão e, ao apagá-la, sentiu como o limo tornava aquelas lajotas escorregadias. Com o sol atingindo seu rosto em cheio, desceu as escadarias que levam à Borges de Medeiros e caminhou rumo ao Mercado Público sem registrar em sua memória as sensações que aquelas quadras traziam.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Abdução

Acordou sobressaltado com o barulho do despertador. Passara a noite em claro pensando na manhã seguinte e pouco pudera dormir. Nervoso, cruzou a sala sem falar com sua mãe e se dirigiu ao banheiro. Durante o banho seu coração batia descompassado. Não se atrevia a pensar no que estava por vir e por isso apenas olhava fixamente para alguns cabelos que desciam lentamente pelo ralo.

Depois de se vestir, desceu as escadas do seu edifício na Avenida Francisco Trein, na zona norte de Porto Alegre. Indo pela calçada, mal notou as pessoas que se amontoavam em frente ao Hospital Conceição a procura de atendimento para suas variadas enfermidades. Era uma terça-feira ensolarada de inverno e os transeuntes caminhavam satisfeitos, após um longo período de chuvas. O seu caminhar, no entanto, era diferente dos demais. Tinha o passo incerto e lento daqueles que não desejam chegar ao seu destino.

Na Avenida Assis Brasil, parou na loja de conveniências de um posto de gasolina e pediu um café. A atendente perguntou se ele se sentia bem, mas não teve forças para murmurar uma palavra sequer. Tomou o café em dois longos sorvos e atravessou a movimentada avenida para tomar o primeiro ônibus que passasse em direção ao centro da cidade.

Dentro do veículo, buscou um banco vazio ao fundo. Porém sua solidão durou pouco, pois fez o restante da viagem praticamente esmagado contra a janela, ao lado de um senhor muito gordo e com um cheiro forte de cigarro que subira no ponto seguinte. Durante o trajeto entrou um rapaz que distribuiu bilhetes com um pedido de esmola entre os passageiros. Ao ler o papel, pensou se alguém teria pena dele também e chorou baixo, com o rosto colado ao vidro.

Desceu do ônibus ao lado do Mercado Público e atravessou o Largo Glênio Peres com a cabeça baixa, envergonhado de suas lágrimas. Parou em seguida, em frente a uma loja de discos na Galeria Chaves, indeciso se deveria levar aquilo adiante. Mas, temendo ser visto por um conhecido que se aproximava, apressou o passo em direção à Rua da Praia. Sem coragem de olhar para trás, subiu a Borges de Medeiros até a esquina com a Riachuelo.

Entrou nessa rua e caminhou mais alguns metros. Suado, olhou ao redor e observou por um instante um jovem casal que escolhia livros de um balaio em frente a um dos vários sebos que ali existem. Viu seus semblantes serenos e chorou mais uma vez, levantando o rosto para o céu claro que agora lhe ofuscava os olhos.

Baixou o rosto, olhou em torno de si novamente e se acalmou um pouco com o fato de não ter despertado a atenção de ninguém. A sua frente estava o seu destino, uma porta aberta ao lado de uma pequena loja de roupas íntimas. Cruzou o umbral e se deparou com uma escada mal iluminada por uma lâmpada suja. O barulho dos degraus que ia galgando fazia coro o bater surdo que seu peito emitia. No topo da escada, se viu entre caixas cheias de livros empoeirados sobre um carpete mofado. Escutou o rangido da porta sendo fechada à suas costas, no outro extremo da escada, fechou os olhos e se deixou dominar pela escuridão.

***

A última referência ao seu nome conhecida constava em um jornal de três meses depois, em uma pequena nota de desaparecimento com uma foto sua ao lado. Mas esta foi pouco notada, pois estava impressa ao lado de um anúncio da grande promoção de automóveis que aconteceria no dia seguinte.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Cavacos do Ofício

Desculpem alguns erros de ortografia e pontuação que estão por aí. Escrevo e depois não tenho olhos ou tempo para revisar.

domingo, 10 de abril de 2011

Madrugada Insone - IV

Há muitos anos atrás, Roberto foi uma pessoa curiosa. Quando criança, nutria com o mais sincero interesse os pequenos mistérios que se apresentam a aqueles que há pouco foram apresentados à vida. Se o céu trovejava, logo queria saber o motivo. Também muito lhe intrigava por que seu pai tinha pelos no peito e sua mãe não. O problema era que seus questionamentos não encontravam o mesmo entusiasmo em uma família ausente que lhe sonegava estas e tantas outras respostas. Com o passar dos anos, a frustração isso lhe causava foi amainando a vontade de saber que o inquietava sempre. Ainda assim, nutria a esperança que a escola que seus irmãos mais velhos frequentavam o ajudasse a ter algumas respostas para a sua curiosidade latente.

Aos seis anos de idade, sentado em uma cadeira meio quebrada de uma escola estadual, percebeu que, ao contrário do que imaginara, sua curiosidade não era bem-vinda em sua classe. A cada pergunta que fazia a sua professora, notava nesta um ar cada vez maior de enfado e impaciência. Ora, tudo que Roberto fazia era obedecer o que a mestra havia enfatizado no primeiro dia de aula, que ninguém voltasse para casa com dúvidas. No entanto, como pode perceber, havia muito mais de protocolo do que de sinceridade nessa solicitação. E embora não soubesse o que significava protocolo, foi sendo aprovado, ainda que sob a pecha de alundo "inconveniente" e "hiperativo".

Chegada a adolescência, a curiosidade que um dia preencheu Roberto de excitação pelo desconhecido se transformou em estranhamento. Também mudou seu sentimento em relação a aquilo que não conhecia, que agora trazia medo ao invés de prazer. Ano a ano, sua vontade de entender o mundo vinha sendo solapada e esta sofreu o golpe final no dia em que algum manda-chuva político apareceu em sua escola para distribuir promessas e apertos de mão no ano em que completaria o ensino fundamental. Movido pelo ânimo que restara, Roberto perguntou ao maioral qual era a importância de ir à escola, posto que esta não tinha conseguido tornar o mundo mais claro para si e, pelo que podia perceber, também para os seu colegas. No lugar da resposta que acreditava que lhe seria dada de acordo com o tão divulgado espírito democrático da escola, recebeu uma suspensão três dias e uma bela coça com a fivela do cinto do seu pai, que fora obrigado a comparecer ao gabinete do diretor para prestar esclarecimentos.

Desde então, Roberto decidiu abandonar a curiosidade. Frequentando agora muito mais a rua do que a escola, percebeu que poderia viver sem fazer perguntas. Mais do que isso, quem faria perguntas agora seriam os outros e ele traria as soluções. Claro que não foi difícil encontrar alguém que lhe daria a atenção tantas vezes negada antes em troca do seu silêncio. Assim, pouco a pouco, Roberto foi trocando o título de "incoveniente" pelo de "extremamente conveniente". Aos dezessete anos abandonou a família sem que esta transparecesse muito pesar, começou a agir mais e questionar menos em benefício próprio, enfim, se tornou um homem resoluto.

E foi esta resolução que colocou Roberto ao volante de uma Kombi velha descendo uma ladeira estreita a toda velocidade na Favela A. Depois de trabalhar bem o vagabundo que tinha armado a palhaçada de um protesto contra a violência do tráfico de drogas na favela e de surrar também sua esposa e o filho mais velhos deles, foi dar um recado explícito a todos que ousassem questionar quem tinha a autoridade ali. Colocou o palhaço na parte de trás do furgão e o largou ao lado de uma vala de esgoto, no coração daquela comunidade. Sem o menor vestígio do garoto curioso que fora um dia, Roberto subiu novamente a ladeira estreita com toda a certeza de que o esperava a aprovação do chefe e uma cerveja gelada.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Pequeno Infortúnio

O grande salão estava repleto de pessoas iluminadas por uma luz suave. Eram dezenas de casais que se aventuravam por aqueles sofás de couro de alguma forma, dispostos a transcender aquilo que muitos chamariam de uma "vida sexual monogâmica". Em uma primeira tentativa ou como verdadeiros habitués, homens e mulheres levavam seus pares pelo recinto em busca de algo excitante para ver ou, quem sabe, fazer.

Entre os homens de todos os matizes que ali se encontravam estava também Ernesto. Ele não tinha exatamente um físico "possante", embora naquele mesmo lugar se encontrassem outros indivíduos bem piores do que ele. Ao contrário do que se poderia pensar, não levava uma vida "selvagem", sendo a maior "loucura" que cometera até então o episódio em que, frustrado em ter seu carro estragado no dia dos namorados, se contentou em levar Sílvia ao motel de ônibus mesmo. Aliás, Sílvia era sua acompanhante neste programa tão pouco usual.

Sobre Sílvia, podemos dizer que aceitou o convite para visitar a casa de suíngue com muito mais efusão do que Ernesto imaginava. O convite surgiu não entre lençóis nem tampouco em um arroubo de lascívia, mas em uma mesa de bar, quando Ernesto havia passado um pouco da conta em termos de álcool. Quando solicitado a colaborar com o rumo que sua incursão noturna tomaria na companhia de Sílvia e dos demais amigos, Ernesto só disparou uma única palavra: suruba. Na manhã seguinte, pronto para se desculpar pelo seu comportamento inadequado, foi surpreendido por Sílvia munida de um papel em que estavam anotados o nome, o endereço e o valor do investimento na mencionada casa de troca de casais.

Dessa maneira, se encontrava todos alí naquele momento: Ernesto, Sílvia e diversos outros casais cobiçosos dos pares alheios. Enquanto buscava se ambientar, nosso estreante na arte da libertinagem punha seus olhos nos convivas, reparando em seus modos e atitudes, quando percebeu (e não sem um certo espanto, é preciso dizer) um cutucão por trás. Antes que pudesse defender sua hombridade ante estranho que chamava sua antenção de uma forma tão canhestra, Ernesto ouviu:

- Haroldo!
- Ernesto.
- Hã?
- Meu nome é Ernesto.
- Você não não é o filho da dona Mira?
- Sim, sou eu mesmo.
- E não me reconhece?
- Claro que não!
- Ah, que bobagem! Com esta máscara não tinha como reconhecer mesmo. Espera. E agora?
- Ainda não.
- Sou eu! O Vavá!
- Quem?!
- O Valdomiro, filho da Marizete e do Agenor, que morava três casas depois da sua. Nós jogávamos futebol juntos.
- Ah. Pois é. Como vai?
- Levando, levando. E você, vem sempre aqui?
- Não, é a primeira vez.
- E veio sozinho?
- Não, vim com a minha noiva. Onde ela foi se meter?
- Veja só! Noivo, hein? Então se livrou daquela safada que você namorava naquela época?
- Na verdade, é com ela que eu noivei, a Sílvia.
- Opa. Não leve a mal. Safada é um modo figurado de falar. Tipo "venceu na vida, a safada". Entendeu? Na verdade, sempre achei ela uma moça muito recatada.
- Sei. Não me leve a mal, mas eu preciso ir andando.
- Claro, claro. Safado.

E com um meio sorriso nos lábios, Ernesto saiu à procura de Sílvia, que suportava com abnegada bravura uma dupla penetração naquele momento.